Soberania do Brasil sobre a biodiversidade depende de mais investimento em CT&I
28/06/12 – Embora os governos estaduais estejam ampliando os investimentos em Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I) por meio de suas fundações de amparo à pesquisa, inclusive na Região Norte, Nordeste e Centro-Oeste do País, ainda falta muito para o Brasil evoluir no domínio de uma de suas maiores riquezas naturais, como a biodiversidade da Amazônia. Esta é a opinião do presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de CT&I e secretário estadual de CT&I do Amazonas, Odenildo Sena.
“Como podemos dizer que temos soberania sobre a Amazônia se nós não a conhecemos?”, questiona Sena, em entrevista ao DCI. Segundo ele, a população da região “também quer ter direito à felicidade”, usufruir de bens materiais.
“Querem que a gente preserve a Amazônia, mas não fazem nada de ousado para isso”, completa, lembrando que as últimas intervenções federais de peso foram a Zona Franca de Manaus — “que, embora válida, produz coisas distantes da identidade amazônica”—, e as fracassadas Transamazônica e Hidrelétrica Balbina.
Por isso, os governos estaduais do norte discutem com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), um plano com estratégias de ciência e tecnologia para a Amazônia, nos próximos vinte anos. Dentre os alvos, a biotecnologia é o carro-chefe.
A atual bandeira de luta do Consecti é a criação do Código Nacional da Ciência, reunindo toda a legislação existente sobre o tema. “As leis vigentes dificultam o avanço da pesquisa e desenvolvimento. Primeiro, porque estão espalhadas: um pedaço na Lei do Bem, outro na Lei de Inovação. A aquisição de equipamentos para pesquisa é um tormento”, ressalta Sena. O código, que terá de ser aprovado no Congresso, também vai propor mais incentivos fiscais para pequenas empresas que promovem pesquisa.
A seguir, a entrevista.
DCI: Qual é a situação da Ciência e Tecnologia nos estados?
Odenildo Sena: Apenas Roraima ainda não tem uma fundação de amparo à pesquisa. Os demais estados todos criaram essa instância, o que é um avanço e tanto. Todas elas querem ser iguais à Fapesp [do Estado de São Paulo]. A maioria delas é recente. No Amazonas, temos investido bem desde 2003. As outras instituições da Região Norte começaram agora. Até 2003, no Amazonas, os pesquisadores disputavam as bolsas de estudos com os da Região Sudeste, que concentra pouco mais de 60% dos doutores e pesquisadores. Com a Fundação, eles começaram a concorrer entre si e isto gerou uma qualificação e uma competitividade maior. Mas os dados começam a preocupar: os estados estão assumindo o papel de investidores em ciência, tecnologia, inovação e formação de mestres e doutores.
E o que o governo federal tem feito nesta área?
Com a criação do Fundo de Desenvolvimento de Ciência e Tecnologia [NDCT] e com a política de descentralização do governo federal, começaram as parcerias. Isto foi bom. Por exemplo, a Finep [Financiadora de Estudos e Projetos] tem o Programa de Apoio à Pesquisa de Micro e Pequenas Empresas, de subvenção econômica, com R$ 200 milhões disponíveis. Em vez de lançarem edital nacional, a Finep chama os governos estaduais, por meio de suas fundações de amparo à pesquisa, e pergunta quanto elas têm e quanto querem investir.
Percentualmente, nos últimos anos, a Região Norte foi a que mais levou recursos, ao lado da Nordeste e da Centro-Oeste. É bom, mas ao mesmo tempo falta muito para diminuirmos a distância entre as regiões. A região Norte está na boca de todos, principalmente por conta da Rio+20. Só se fala na Amazônia. Estamos falando de uma região que tem a maior reserva hídrica do mundo. Temos o maior aquífero do mundo.
E as possibilidades diversas de desenvolvimento tecnológico e científico da Amazônia?
Em 2002, o Amazonas tinha 433 doutores espalhados em todas as áreas. Em 2010, segundo o senso do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], esse número foi para cerca de 1.200 doutores. Mas ainda é pouco para dar conta. Ainda não conhecemos aquela região.
Esses investimentos no Amazonas estão direcionados para quê?
Quando fui presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas, eu dizia que as carências eram tão grandes que não era possível fixar prioridade. Nas ciências biológicas temos muitas coisas boas no Instituto Nacional de Pesquisa Amazônica. Nas agrárias temos um peso razoável. Na área de Tecnologia da Informação e Comunicação, a Universidade Federal de lá tem um dos melhores programas de pós-graduação do Brasil. Nestas áreas, as turmas se envolvem lá, mas em outras é preciso sair porque não temos programas no estado. A vocação da região é biotecnologia.
Como se dá a articulação pública com a tecnologia de produtos?
Temos o Centro de Biotecnologia da Amazônia [CBA], criado em 2002 no âmbito do Programa Brasileiro de Ecologia Molecular para o Uso Sustentável da Biodiversidade. Sua função é transformar pesquisas a partir de matérias-primas amazônicas em produtos, mas isto não acontece porque o centro não tem um status jurídico até hoje, ou seja, dez anos depois de criado.
Existe uma briga entre os três ministérios: Ciência, Tecnologia e Inovação; Meio Ambiente e Desenvolvimento, Indústria e Comércio, a quem o CBA é ligado. Mas eu atribuo isto tudo ao desapreço pela região.
A soberania brasileira em relação à riqueza da biodiversidade da Amazônia passa por mais investimentos em pesquisa e desenvolvimento?
Existe muita hipocrisia nisso. Na Rio+20 todo mundo falou na Amazônia, porém o que bem sintetiza as necessidades da região foi dito por Berta Becker, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e conhecedora daquela realidade. Segundo ela, “chega de a Amazônia servir de almoxarifado do Brasil e do mundo”. Ou seja, os ambientalistas querem que a gente preserve, mas nós, que estamos lá, queremos ter direito à felicidade, direito de usufruir de bens materiais. Querem que a gente preserve a Amazônia, mas não fazem nada de ousado para isso. Já os governos da região fazem o que podem.
O orçamento da Fundação de Amparo à Pesquisado Amazonas chega a R$ 130 milhões neste ano. Não é pouco para um estado que até 2003 não destinava recursos públicos para este fim. Temos 98% da floresta preservada naquelas reservas naturais todas. Incomoda muito que todo mundo fale da Amazônia, mas que o próprio governo federal não tenha uma ação. De 1964 para cá, da época da ditadura, o que nós temos no Amazonas? A Zona Franca, que se transformou em um polo industrial. O que é discutível, embora hoje gere cerca de 120 mil empregos, o que é muito. Mas estamos produzindo um monte de coisas que não têm identidade com a região. Temos que brigar para manter a Zona Franca, mas é preciso buscar alternativas, como sermos referência em biotecnologia.
O senhor chega a temer que a essa ausência de recursos ponha em risco a segurança e a soberania da Amazônia?
Sim. Como podemos dizer que temos soberania sobre a Amazônia se nós não a conhecemos? Mas eu falava das intervenções, da Zona Franca, criada na época do Castelo Branco, em 1968, além de outros projetos desastrosos. Caso da Hidrelétrica de Balbina e da Transamazônica.
E o Programa Ciência sem Fronteiras, anunciado pela presidente Dilma, não ajuda?
Esse Programa Ciência Sem Fronteiras é uma grande ideia. Uma grande sacada porque vai permitir um salto enorme de quantidade e qualidade na ciência brasileira. Mas, por outro lado, já há uma grande coisa que preocupa nesta área, que é o corte violento de recursos, pelo segundo ano consecutivo, para a área de Ciência e Tecnologia. Só este ano 22%, ou R$ 1,7 bilhão. Ano passado foi cortado R$ 1 bilhão. Mandamos alunos e trazemos gente de fora. A crise ajuda o Brasil a trazer bons cérebros de fora, que vêm com projetos de pesquisa. O governo federal traz via CNPq e Capes. O que nos preocupa neste projeto é que quem está saindo do País vai voltar e, a continuar esta redução de investimentos, essa gente não vai ter infraestrutura nem laboratórios para trabalhar. Mesmo assim temos de comemorar. O Brasil percebeu que não há outro caminho para crescer, ter soberania real, competitividade, ocupar um espaço de real destaque no cenário mundial senão for pela ciência e tecnologia. Há um clima, que vejo no Amazonas e no resto do Brasil, legal e animador em relação a esta área. Não era frequente a ciência ser pauta.
Qual a bandeira de luta atual do Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência e Tecnologia?
É o Código Nacional da Ciência. De alguns anos para cá, e eu não posso deixar de citar o governo de Lula, os investimentos em Ciência e Tecnologia apareceram mais, apesar dos cortes em 2011 e 2012.
Só que a legislação cria obstáculos para o avanço da pesquisa e desenvolvimento. As leis estão espalhadas: um pedaço na Lei do Bem, outro na Lei de Inovação. O acesso à biodiversidade é um problema, inclusive a aquisição de equipamentos para pesquisa. Tudo é colocado no mesmo bolo. A lei de licitações brasileira é genérica. Da mesma forma que você licita a compra de um tijolo, licita um equipamento de tecnologia. A lógica de uma licitação é o preço mais baixo, um grande problema para a área da ciência. Em março de 2011 propomos uma legislação unificada para a área de ciência e tecnologia, um Código Nacional da Ciência. Uma proposta conjunta, incluindo até tribunais de contas. Ainda estamos na fase de agregar sugestões das universidades, Capes, Fin Finpe, entidades empresariais.
O que o Código trará de novo em relação às regras atuais?
Acrescentamos um monte de coisas. Entre elas, a possibilidade de adquirir equipamentos não só pelo preço menor, mas pela melhor adequação. Rapidez nas importações é outra questão. Também vamos mexer nas regras vigentes de incentivos fiscais para beneficiar pequenas empresas que promovem pesquisa e desenvolvimento.
Como é o envolvimento dos empresários pequenos, médios e grandes nestes esforços que estão sendo feitos na sua região?
Este é um caminho que se tem que percorrer ainda, embora tenhamos avançado muito nestes últimos tempos. Hoje temos um movimento empresarial pela inovação que era impensável até pouco tempo atrás. Eles estão começando a perceber que sem inovação, exportaremos só commodities e matéria-prima. Mas levar pesquisador para dentro das empresas é uma luta. Tem empresa que quer desenvolver produtos. O CNPq tem programa que ajuda levar pesquisadores para dentro das empresas em que o empresário não vai pagar nada, o pesquisador vai como bolsista. Há dois anos criamos um fórum de inovação para aproximar pesquisadores e empresários. Aloizio Mercadante, quando foi ministro da Ciência e Tecnologia, acrescentou Inovação ao nome do Ministério. Isso está contaminando os governos estaduais. No final de 2010, antes da mudança do nome do Ministério, o governo do Amazonas fez isso.
O senhor ressalta alguma outra experiência que esteja em andamento nos estados?
Ressalto os dois conselhos—o das secretarias [Consecti] e o das fundações estaduais [Comfap]—, que são novos, com cinco anos no máximo. Essas instâncias coletivas deram um gás no debate e passamos a ocupar um espaço precioso: o Comitê Executivo, que reúne o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e os dois conselhos. Lá discutimos nossas demandas. Há duas semanas, fechamos com o Banco Interamericano de Desenvolvimento [BID] acordo para um plano com estratégias de ciência e tecnologia para a Amazônia. A ideia é montar um programa para sensibilizar e estabelecer ações para os próximos vinte anos. Pode mudar o governador, mas o plano estará em pé. A biotecnologia será o carro-chefe desse plano, mas temos algumas demandas diferenciadas. Alguns estados da Amazônia têm problemas sérios de Internet. Queremos fixar quatro ou cinco grandes metas para a região e verificar o que cada estado prioriza em relação a essas metas. No caso no Amazonas, nosso alvo é a biotecnologia, criar um parque tecnológico voltado para o setor de pesca—a exemplo de outras commodities, exportamos peixe in natura para vários países, quando aquilo poderia sair de lá processado. O momento agora é discutir este plano estratégico para a Amazônia.
Fonte: Jornal DCI, por Roberto Müller Filho e Liliana Lavoratti