Especialista aponta desequilíbrio entre recursos para doenças negligenciadas

A inovação orientada pelo mercado consumidor e a vinculação do que é gasto em pesquisa e desenvolvimento ao preço final dos produtos são problemas que precisam ser resolvidos para o enfrentamento das doenças tropicais negligenciadas, defende Gabriela Costa Chaves, coordenadora da área de Acesso da organização Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), no escritório regional da América Latina. Criada em 2003, a DNDi busca desenvolver novos tratamentos para malária, leishmaniose, doença do sono (tripanossomíase humana africana, THA) e doença de Chagas. Recentemente a organização, sem fins lucrativos, passou a desenvolver tratamentos mais adequados para aids em crianças e para filarioses específicas.

Farmacêutica e mestre em Saúde Pública, Gabriela foi representante no Brasil da Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais da organização Médicos Sem Fronteiras. Nesta entrevista à revista Radis, ela alertou para o desequilíbrio “fatal” entre a carga global de doenças negligenciadas e os recursos voltados ao tratamento delas.

Por que são necessários novos formatos de financiamento para a pesquisa em doenças tropicais negligenciadas?

Apesar de as doenças tropicais negligenciadas representarem mais de 12% da carga global de doenças, um estudo feito entre 1975 e 2004 apontou que, de todos os novos medicamentos desenvolvidos nesse período, apenas 1,3% foram para essas enfermidades, incluindo malária e tuberculose. Existe um desequilíbrio fatal. As doenças negligenciadas são uma parcela importante da carga global de doenças, mas o sistema de pesquisa e desenvolvimento não se traduz em novas tecnologias em saúde no caso delas, ou seja, não apresenta como resultado novas entidades moleculares [ativos para novos medicamentos ou substâncias que auxiliam o diagnóstico].  Isso se dá em função da maneira como o sistema de inovação funciona hoje.

Fonte: DNDi

 Como esse sistema entrava o desenvolvimento de novas tecnologias para essas doenças?

O sistema de inovação está orientado para um mercado consumidor de fato. Quando se sabe que haverá um mercado para determinado produto, os inovadores investem na pesquisa. Apesar dos avanços dos últimos anos no campo da inovação para as doenças negligenciadas, esses esforços não estão sendo suficientes. Várias iniciativas se dão de forma isolada para desenvolver uma determinada tecnologia, mas permanece o desafio de garantir um financiamento sustentável. É necessária maior coordenação na priorização das pesquisas e das necessidades. É preciso que haja um comprometimento tanto do setor público como do setor privado. Até o momento, a inovação nessa área dependeu na maior parte dos casos de entidades filantrópicas, ONGs, instituições públicas ou contribuições privadas.

Há falta de recursos?

Existe, sim, por um lado, a falta dos recursos, do comprometimento mais contínuo dos recursos, mas falta também maior coordenação dos gastos. Um dos princípios que devem reger qualquer incentivo de inovação nessa área precisa considerar a desvinculação do que é gasto em pesquisa e desenvolvimento do preço final dos produtos, porque não adianta desenvolver uma tecnologia que não será acessível às populações que dela necessitam.

Que tipo de incentivos podem ser dados à inovação nesse campo?

Até o momento, o sistema de inovação em saúde, em muitos casos, tem se baseado no monopólio, ou seja, obtém-se uma patente do produto, e com base nesse monopólio, preços altos são praticados, e esses preços altos em tese incentivam a pesquisa e desenvolvimento. O problema dos preços altos é que eles também terminam por tornar por essas tecnologias inacessíveis. Então, hoje, o que tem se explorado é a criação de mecanismos que possam fazer essa desvinculação. Que a pesquisa e desenvolvimento não sejam incentivados pelos preços altos. Há várias possibilidades na mesa, mas é preciso uma mudança de paradigma.

Quais são as perspectivas?

O que está em processo de negociação na Organização Mundial da Saúde é a possibilidade de uma convenção global de pesquisa e desenvolvimento (P&D), que seria o guarda-chuva de uma série de mecanismos e propostas. Alguns exemplos que estão sendo debatidos são financiamento direto às empresas, pool de patentes, fundos coordenados, abordagens abertas de pesquisa e desenvolvimento em inovação, e prêmios, no final ou durante o processo de desenvolvimento.

Como uma Convenção Global sobre o tema — defendida pela campanha Acesso, da organização Médicos Sem Fronteiras, entre outras instituições — poderia contribuir para a mudança?

Os países membros da OMS definiram a criação de um grupo de especialistas, para explorar uma série de propostas. A proposta mais promissora até o momento é a convenção global de P&D. Nós esperamos que os países entrem e consigam um acordo vinculante, muito importante, porque obriga que a decisão tomada no nível internacional seja implementada no âmbito local.

Fonte: Radis