ARTICULISTAS

* Luciano Mendes de Faria Filho

Uma pergunta assim posta, justo no momento em que as universidades públicas federais do Brasil conhecem um crescimento “nunca antes visto neste país” (sic!), parece pura retórica. Mas, infelizmente, não é.

Há alguns anos, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, ao mesmo tempo em que houve uma diminuição drástica dos investimentos nas universidades públicas federais (não expansão do número de instituições, não realização de concursos, corte de vagas docentes etc) e em ciência e tecnologia (congelamento do valor das bolsas, diminuição do número de bolsas em várias modalidades, lentidão na publicação dos editais etc), houve também, e estranhamente, um significativo aumento da produção científica qualificada/indexada oriunda, em sua quase totalidade, justamente daquelas mesmas instituições públicas.

Na ocasião, muitos chegaram a alardear que o fenômeno indicava a improdutividade anterior de nossas universidades: se, com menos pessoas e recursos podia-se produzir mais, a conclusão lógica é que o regime anterior primava pela ineficiência e desperdício. No entanto, não demorou muito para entendermos um dos fundamentos do fenômeno: nos anos seguintes, mais e mais pesquisas passaram a demonstrar um nível altíssimo e crescente de adoecimento dos pesquisadores e estudantes de pós-graduação brasileiros. E uma das causas mais apontadas não era outra senão a intensificação do trabalho, aliada à precarização das condições nas quais o mesmo vinha sendo realizado.

De lá para cá, o problema só se fez aumentar. Quem vive o dia-a-dia da universidade sente o alto grau de insatisfação e adoecimento dos pesquisadores, sejam eles os recém-ingressos nas instituições ou aqueles que construíram a própria universidade ao longo de várias décadas de dedicação. Tais fenômenos, cumpre dizer, não diminuíram com a expansão das universidades públicas por meio de programas como o Reuni. Pelo contrário, eles se intensificaram.

A impressão que se tem é que as políticas de Estado para as universidades públicas estão colocando em risco essas próprias instituições, uma vez que coloca em risco a integridade de seus melhores pesquisadores. É como se o Estado estivesse matando, avidamente, a sua “galinha dos ovos de ouro”.

Diante do quadro, muitos discutem saídas para o problema. Está claro que não se trata, de forma alguma, de expandir mais do mesmo, seja este “mesmo” as próprias instituições seja o modelo de financiamento á ciência e tecnologia adotado no Brasil. Definitivamente, a questão não é, também, apenas relativa ao financiamento do sistema. Talvez seja o próprio modelo que precise ser discutido.

Há, hoje, uma séria e honesta crítica às chamadas políticas produtivistas de ciência e tecnologia implantadas no Brasil pelo Ministério da Educação – via Capes – e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação – via CNPq. Chama-se a atenção para a intensificação do trabalho, para a valorização da quantidade da produção em detrimento à qualidade, para os tempos de titulação diminuídos à custa de uma deficiente formação, para as canhestras políticas de internacionalização da pesquisa, da formação e da produção, dentre outros aspectos.

No entanto, em muitas destas críticas, pouco se fala do próprio modelo de institucionalização das universidades públicas brasileiras como um dos entraves à solução dos impasses que estas instituições vivem hoje. Nosso modelo de ensino público superior, ao sintetizar numa mesma e única instituição, as universidades, o ensino, a pesquisa, a extensão acaba por enredar os docentes/pesquisadores numa plêiade de atividades que, não raramente, competem, sem suas finalidades, umas com as outras. Hoje, os professores têm que dar uma carga relativamente alta de aulas – no mínimo 8 horas por semanas, as quais, se levadas a sério, se desdobram em outras 8 de preparação e atendimento de alunos. Têm que fazer pesquisa e orientação de alunos de graduação, mestrado e doutorado. Têm que fazer extensão ou prestação de serviço, muitas das quais para complementar o salário e/ou para a manutenção de suas próprias condições de trabalho. Têm que participar de um sem número de reuniões e cargos de gestão da própria universidade.

Além disso, a ausência de uma verdadeira autonomia universitária torna quase impossível a busca de soluções específicas e eficientes para os problemas das diferentes instituições. A isto se alia, ainda, o fato de que as nossas instituições se complexificaram, mas a gestão das mesmas padece do mesmo amadorismo de décadas atrás quando foram criadas. A tudo isso se soma, ainda, o fato de que em praticamente nenhuma universidade pública brasileira há uma efetiva participação do corpo técnico-administrativo nas atividades fins da universidade. Estas, via de regra, são realizadas por bolsistas ou por pessoal contratado pelos projetos, o que tem como consequência uma rotatividade e um amadorismo de grandes proporções.

Muitos críticos à atual situação das universidades acham que este modelo dever ser preservado pois integraria ensino, pesquisa, extensão e gestão universitárias e que os problemas são mais operacionais do que do modelo em si. Talvez seja mesmo. Mas, se não queremos voltar aos padrões anteriores de produção cientifica qualificada/indexada, se não queremos transformar nossas universidades em grandes colégios, ou, ainda, se não queremos aumentar ainda mais o nível de adoecimento dos professores/pesquisadores, é imperativo que perguntemos: por que o modelo tem que ser único? Por que será que países muito menos desiguais econômica e socialmente do que o nosso, muito mais democráticos e com um número muito maior de vagas públicas no ensino superior não o adotaram? Não estaria no próprio modelo um dos entraves à expansão do ensino superior público no Brasil e, de quebra, uma das causas da insatisfação coletiva que vivemos hoje nas universidades?

Penso que a naturalização do atual modelo, como se fosse o único que contribuiria para o desenvolvimento social, cultural, científico e tecnológico do País, ou como se ele não fosse uma “invenção” recente, longe de ajudar a avançar a democratização do ensino superior e melhorar as condições de ensino, pesquisa e extensão universitárias no Brasil, pode estar atrapalhando a resolver os grandes impasses que o próprio modelo tem produzido. Enfrentar este debate hoje é, me parece, uma forma de evitar que as políticas de Estado, com ou sem a nossa contribuição, acabem por destruir a própria instituição que dizem querer expandir.

* Luciano Mendes de Faria Filho é professor da UFMG e coordenador do Projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil – 1822/2022.

Este artigo foi divulgado anteriormente no Jornal da Ciência. A equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.