ARTICULISTAS

* Keila Grinberg

Quando comecei a pensar que estudar história poderia ser uma boa opção para o meu futuro profissional – em vez de economia, educação física ou medicina; acreditem, considerei todas essas possibilidades –, um colega de turma na escola não escondeu sua perplexidade. “Mas, em que você vai trabalhar?”, perguntou ele. Ao que respondi com a maior naturalidade: “Vou ser professora e pesquisadora”.

Não havia jeito de convencê-lo de que o passado também se pesquisa, e de que aquilo que aprendemos na escola muda com o tempo

Era a menção à pesquisa que ele não entendia: “Como assim, pesquisar o passado? O passado a gente conhece. Aprende na escola. Pesquisa é para o futuro, para os cientistas descobrirem, por exemplo, a cura do câncer.” Não havia jeito de convencê-lo de que o passado também se pesquisa, e de que aquilo que aprendemos na escola muda com o tempo – o que nossos pais aprenderam é diferente do que nós estudamos, que, por sua vez, será diverso do que ensinarão a nossos filhos.

Provavelmente, naquela época, eu também não sabia explicar isso direito. E meu amigo continuava a balançar a cabeça, meio penalizado por eu fazer uma escolha que lhe parecia estapafúrdia.

O tempo passou e lembrei dessa história a propósito da polêmica sobre a regulamentação da profissão de historiador, recém-aprovada pelo Senado Federal (mais informações no site da Associação Nacional de História).

O projeto de lei n° 368/09 prevê que a profissão seja exercida por diplomados em cursos de graduação, mestrado ou doutorado em história. Por exercício da profissão, entende-se a atuação como professores de história nos ensinos básico e superior e o “planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica”, além do “assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos para fins de preservação”.

Para que regulamentar?

As discussões sobre os objetivos da regulamentação têm sido intensas. Em um país com tradição corporativa como o nosso – basta lembrar a tentativa de desregulamentação da profissão de jornalista –, aqueles que defendem a regulamentação entendem que é preciso garantir mercado de trabalho para atividades que são geralmente, mas nem sempre, exercidas por historiadores.

Entre os contrários à regulamentação, há dois tipos de argumento: os que são contra toda e qualquer regulação profissional, e os que se opõem especificamente à criação da profissão de historiador, uma vez que esse conhecimento específico poderia ser adquirido de outras maneiras que não a formação universitária.

Isso me remete de novo às ponderações de meu amigo de escola. Será que as pessoas acham – como ele achava – que nos cursos de história estudam-se fatos, datas e nomes relacionados a processos históricos? Para aprender isso, certamente, não é preciso cursar uma graduação na área. A leitura de uma boa enciclopédia basta. E, se for para ensinar isso nas escolas, também não há necessidade de ser formado em história.

Sem entender que o conhecimento histórico é mutável e incompleto, que o que se sabe sobre um período muda com o tempo, com novas pesquisas e reflexões, não se faz história

Mas não é isso o que aprendemos e ensinamos nos cursos de graduação na área. Aprendemos, e ensinamos, que existe um ‘olhar do historiador’, ao qual Benito Schmidt, presidente da Associação Nacional de História, faz referência ao defender a presença de historiadores em diversos espaços sociais.

E esse olhar, que nada mais é do que a compreensão da natureza do conhecimento histórico, é fundamental tanto para quem vive de pesquisar e escrever história quanto para quem vive de ensiná-la, em qualquer nível. Sem entender que o conhecimento histórico é por essência mutável e incompleto, sem perceber que o que se sabe sobre determinado período ou processo muda com o tempo, com novas pesquisas, novas reflexões, não se faz história. É isso o que o futuro profissional de história aprende na universidade.

Esse ‘olhar do historiador’ pode até ser aprendido por quem não faz um curso superior de história. Mas não será bom historiador quem não apurar essa mirada, quem não observar através do objeto estudado, quem  não souber enxergar.

* Keila Grinberg é historiadora e colunista  permanente do Portal Ciência Hoje.

Este artigo foi divulgado anteriormente no portal do Instituto Ciência Hoje. A equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.