CBA: Pronto para trabalhar, mas sem certidão de nascimento

27/01/ 2012 – Ele tem uma década de vida, mas não existe formalmente. Funciona como um "anexo" de uma superintendência, quando deveria ser um órgão independente. E, para completar, não consegue manter um quadro fixo de funcionários – é movimentado por bolsistas. Apesar de todo seu potencial estratégico e científico, a situação do Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA) é "preocupante", segundo o secretário de Ciência e Tecnologia do Amazonas, Odenildo Sena.

"O CBA em 2012 completa 10 anos nesta situação inacreditável. A gente não pode nem chamá-lo de instituição. Aquilo [o CBA] está esperando a certidão de nascimento para entrar no mercado", lamenta Sena. O professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) João Lúcio Azevedo, coordenador de microbiologia de 2005 a 2011 no CBA, classifica o órgão como "um centro virtual, sem CNPJ e praticamente sem rumo, em se considerando a realidade da região".

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No início de dezembro de 2011, o Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de CT&I (Consecti) e o Conselho Nacional das Fundações de Amparo à Pesquisa (Confap) enviaram uma carta aos ministérios de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), Meio Ambiente (MMA) e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), os três ministérios envolvidos na criação do CBA. A ideia era cobrar uma atitude em relação à ausência de personalidade jurídica do centro, que, entre outros obstáculos, impossibilita a contratação de pessoal. "O CBA está pronto, só é preciso que se decida se vai ser uma empresa privada, se vai ser empresa pública ou se vai ser uma fundação de caráter privado, ele só precisa disso", sentencia o secretário.

Também em dezembro passado, poucos dias depois do envio da carta, foi divulgada a criação de uma comissão tripartite para estruturar o CBA, cujo grupo será coordenado pelo secretário de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI, Carlos Nobre. "Nossa preocupação é grande porque, apesar da pressão que a gente fez com a carta do Consecti, já decorreram dez anos e a gente só acredita [na comissão] vendo", questiona Sena, para quem a situação está inserida numa questão maior, de "desapreço" do Brasil em relação à região amazônica. Sena presenciou o anúncio da comissão pelo então ministro Aloizio Mercadante no dia da reunião do Conselho Nacional de CT&I. "Ele foi gentil, disse que queria que eu acompanhasse [a comissão]. Não entramos em detalhes, mas estou esperando qualquer chamado para ficar a par, de fato, de como vai ser o trabalho e quais são os prazos. Comissões já foram criadas várias", relembra.

"É claro que qualquer tentativa de se criar um sistema apropriado, como uma comissão para o CBA, tem que ser vista de maneira otimista, embora ideias nesse sentido já tenham sido tentadas sem sucesso", reforça Azevedo. Já Ennio Candotti, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e diretor do Museu da Amazônia, afirma que "depois de dez anos dizer que ainda vai haver uma comissão é risível". "É difícil que resolva, sabendo que essa comissão parte do MCTI. Isso exige uma intervenção de política de Estado. A presidente ainda não se manifestou a respeito", alega o físico, que acredita que o entrave burocrático é "fumaça". "Não é por aí. Ele desaparece em muitas outras ocasiões quando a questão é de interesse nacional. O que tem acontecido é uma sabotagem de colarinho branco", acusa.

Motivos – Os especialistas questionados pelo Jornal da Ciência se dividem na hora de apontar razões para a situação crítica do CBA. Sena acredita no "desentendimento" e na "ciumeira" entre os três ministérios envolvidos. "Os conflitos de ministérios são equivalentes a conflitos de comadres. Há interesses maiores", alerta Candotti. No entanto, Sena destaca que, nos últimos tempos, "quem tem tomado à frente disposto a resolver era o [então] ministro [Aloizio] Mercadante". Azevedo, por outra parte, lembra que o MDIC, por meio da Superintendência da Zona Franca de Manaus (Suframa), foi o ministério que arcou com a maioria das despesas, "mas sem qualquer experiência na área de biotecnologia e biodiversidade" e que outros ministérios apresentavam "ideias muitas vezes fora da realidade, que tornaram o CBA quase que inviável nestas condições". "Um Ministério como o de C&T, atual CT&I, seria possivelmente o mais indicado para coordenar de maneira apropriada o CBA", sugere.

Azevedo lista uma série de problemas relacionados com a definição da situação jurídica do CBA, como o desinteresse dos ministérios em desembolsar dinheiro para a contratação de concursados (possivelmente os bolsistas capacitados) e o fato de o modelo imaginado para o CBA ser o da manutenção de pessoal em grande parte por projetos financiados por grandes empresas privadas – o que quase não existe na região. "Além do mais, empresas como as nacionais têm que ter certeza de que o modelo funciona, o que até hoje não foi demonstrado", destaca.

Por sua parte, Candotti aponta três razões que refletem o pouco interesse em desenvolver a microbiologia na Amazônia e que contribuem para que o CBA continue na atual situação: o interesse internacional em que não se desenvolva esse tipo de iniciativa no Brasil; a própria legislação, a MP 2.186/ 2001, "que cria dificuldades movidas por um irracional propósito de inibir e controlar a pesquisa com emendas e correções sucessivas a respeito da bioprospecção, em nome de evitar supostas biopiratarias"; e a hostilidade e a "alergia" dos movimentos de conservação ambiental ao conhecimento científico. "Nunca vi as grandes ONGs conservacionistas defenderem a pesquisa científica para melhor conservar os ambientes naturais. Eles vêem como uma ameaça aos equilíbrios ambientais e não como uma necessidade", opina.

Em relação à questão internacional, Azevedo toca em outro ponto. "Existe um receio exagerado de colaboração com empresas de fora da Amazônia, quanto mais do exterior, talvez por questões históricas no início da criação do CBA, temendo-se sempre biopirataria, quando se sabe que ela existe e que com contratos apropriados ela pode ser evitada e é necessária, mesmo porque a Amazônia não se restringe ao Brasil, mas inclui outros países da América do Sul", alega, lembrando que a falta de um modelo de gestão, de equipe fixa e de projetos em andamento promissores dificultou a relação com as empresas. "Desconfio que os interesses internacionais são atendidos por meio de um tácito contrabando de amostras. Nesse mundo, o jogo não é de cavalheiros, é um jogo de caneladas", completa Candotti.

Riqueza – "Em escala razoável, [o CBA] é tudo que se quer para a Amazônia, ou seja, temos essa riqueza toda aqui, mas ela não vale de nada para nós se não tirarmos proveito, sustentavelmente, para fazer a felicidade de quem vive aqui na região. A Berta Beck sempre diz que as pessoas sempre vêem a Amazônia como esta coisa intocável, mas aqui são mais de 22 milhões de habitantes. Essa gente tem o direito à felicidade. E está plantada em cima dessa riqueza", reivindica Sena.

"Sem desmerecer a floresta em suas múltiplas dimensões, sua principal riqueza é em microorganismos, o ponto central que se queria estudar no CBA", exemplifica Candotti. Por outro lado, o diretor do Museu da Amazônia acredita também que as grandes empresas que dominam o mercado internacional de milhões não têm interesse em ver surgir na Amazônia, "a mais rica fonte de microorganismos do planeta", uma empresa concorrente.

Recentemente também foi anunciada pelo MCTI a negociação da inclusão do CBA em um programa das Nações Unidas voltado para a formação e pesquisa de biodiversidade. "Acho que não se pode pensar em nada para o CBA sem antes resolver a questão da identidade jurídica dele. Hoje ele funciona como uma espécie de anexo da Suframa e que nem está claro na estrutura organizacional dela. É uma espécie de estranho no ninho. Mas o CBA em pouco tempo poderá ser autossustentável. Por seu ramo e competência, não lhe faltarão recursos", opina Sena. Já Azevedo acredita que, se a inclusão se der, será "uma excelente ideia" desde que "se estabeleça uma rede de instituições e empresas voltadas a projetos de real interesse aplicado para usar de modo sustentável, especialmente a enorme diversidade microbiana, praticamente não pesquisada, e também vegetal e animal da Amazônia".

Para o professor, o tempo que se está levando para utilizar esta diversidade biológica disponível é um "dano" para o País e para toda a humanidade, que poderá se beneficiar dessa biodiversidade nas áreas de saúde, agropecuária, indústria e ambiente no desenvolvimento de processos e produtos de interesse econômico e social, "objetivo principal da Biotecnologia". "O Brasil não entendeu ainda a importância dessa região hoje e para o futuro do Brasil e do mundo. Temos aqui toda essa riqueza de biodiversidade, a maior reserva hídrica do planeta, mas a turma não está muito preocupada, só vão abrir os olhos quando o leite estiver derramado", conclui Sena.

Fonte: Jornal da Ciência, por Clarissa Vasconcellos