Democracia é essencial para mudar a ciência nos países tropicais
A maioria das sociedades de Medicina Tropical no mundo está, ironicamente, fora dos Trópicos. Tal situação deve-se à origem colonial da Medicina Tropical, dedicada aos interesses imperiais das metrópoles na Europa Ocidental e nos Estados Unidos, onde foram criadas as primeiras sociedades, após a London School of Tropical Medicine. É preciso superar essa situação para que os países tropicais se apropriem de fato da Medicina Tropical. “Não podemos mais nos ver como imagens espelhadas nos países ricos, mas como nós mesmos. Nós, povos tropicais, precisamos aprender a ser independentes cultural e intelectualmente”, declara o ex-presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical (SBMT) e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Dr. Carlos Costa.
Atualmente, o cenário das doenças tropicais é urbano e com grande participação das causas externas entre as causas de morbimortalidade. Doenças urbanas como a dengue e a leishmaniose visceral, infecciosas, e como a violência, o crack, e os acidentes de motocicleta devem se juntar às tradicionais como a doença de Chagas, a esquistossomose e a malária. A mudança do perfil mórbido tropical de rural para urbano, ocorreu após a chamada Revolução Verde, em que a descoberta de tecnologias baratas permitiu aumentar a produção agrícola em larga escala, obrigando pequenos produtores nos Trópicos – que não tinham como concorrer com grandes empresas – a migrarem para as cidades, que se tornaram, então, ambientes inóspitos, paupérrimos, incapazes de absorver a imigração em massa. Todo este drama se desenrolava em nações que não haviam amadurecido ainda para a democracia, sendo dominadas por oligarquias, onde os mais pobres não são, ou são pouco protegidos pelo Estado.
De acordo com Carlos Costa, somado ao binômio calor e pobreza, esse processo desencadeou um cenário que os brasileiros conhecem bem. “Vivemos em ambientes urbanos de violência ensandecida, com um Estado pouco presente e onde grande parte população é excluída dos domínios do estado”. A situação é muito pior entre outras nações tropicais da América Latina e Caribe, da África e do Sul da Ásia. Segundo o cientista, formado em Saúde Pública Tropical em 1997 pela Universidade de Harvard, é preciso haver mudanças drásticas no panorama científico e social nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos.
“É necessária uma revolução no pensamento. Temos que entender e encarar essa dinâmica das epidemias e da violência, intencional e não intencional, na qual estamos encarcerados e encontrar saídas. A Medicina Tropical necessita liderar este movimento, pois representa a linha de frente dos interesses sanitários dos Trópicos. Esta transformação precisa ser feita por meio de pesquisas de boa qualidade, focadas nas populações mais pobres e não apenas nas prioridades eleitas fora dos Trópicos. O processo só poderá ocorrer por meio de instituições fortes, dedicadas aos interesses da maioria, com a participação da comunidade científica organizada. Com isto, nós mesmos, povos tropicais, poderemos identificar e elegermos os nossos problemas prioritários”, explica.
A independência cultural dos Trópicos em relação aos países do hemisfério Norte e o maior envolvimento científico são soluções apontadas, juntamente com investimentos em pesquisas mais focadas no bem estar coletivo e com auxílio da imprensa na disseminação do espírito de mudança. “Tal revolução só ocorrerá com a democratização plena das nações tropicais, a partir da liberdade de pensamento e da prática da democracia pela população menos favorecida, pois, afinal, há uma longa distância entre constituição e democracia”, complementa.
O médico explica que a SBMT tem procurado se inserir de forma proativa nesse processo, entendendo que a Medicina Tropical brasileira não se restringe ao Brasil, voltada apenas para os povos do interior. “Esta é uma grande nação e o que fizermos aqui dentro terá repercussão internacional. Precisamos ter uma visão cosmopolita, transtropical. Por isso, o portal da Sociedade também está redigido em inglês, para globalizar o que discutimos por aqui. Trouxemos para nós a responsabilidade de fazer um contraponto à Medicina Tropical praticada no mundo atualmente (mas não oposição, preservando intacto o espírito de colaboração científica com os países ricos). Não são os outros que têm que dizer quais são os nossos problemas e, sim, nós mesmos. Se conseguirmos disseminar essa ideologia nos demais países tropicais, estaremos cumprindo um grande trabalho em favor dos povos mais pobres da Terra”, finaliza.
Fonte: SBMT