Do ethos à ética
- Guaraciaba Tupinambá
Na ambição de estabelecer o controle dos corpos, seres humanos de uma determinada ordem impõem a outros seres humanos, que estejam fora dessa ordem, regras e medidas. O controle dos corpos é um requisito essencial para a regulação da conduta conforme uma dada ordem. A esse processo de imposição pode-se nomear de diferentes modos e formas: civilização; evangelização; aculturação; movimento (ecológico; revolucionário; contracultural; nacional socialista; fascista; comunista etc.); etc.
Quem determina a ordem que quer trazer à ordem o que se encontra fora dela? A resposta é: o ethos. Aqui entendido como o lugar primitivo que por hábito, repetição, acaba por determinar o ser. Ser, portanto, é corresponder a um determinado ethos. A cada instante, momento, presente, emerge uma conduta em conformidade com um determinado ethos.
O momento, a duração, o tempo, não deve ser tomado em sentido cronológico, e sim de permanência de sentido. Sua permanência e repetição é efeito do esquecimento (nano, micro, mínimo) e da satisfação, do contentamento, do sentimento de justo, de adequado, de bem, em face de isso (o acontecimento, o que se dá nesse instante).
O corpo, o nome e o ethos dominante são os elementos que dão ao indivíduo da espécie humana a condição de ser humano. Um corpo masculino, um nome José, um ethos dominante: carpinteiro.
Em relação ao corpo e seu DNA, ao nome e seu CPF, RG, filiação…, parece não haver dúvida acerca da definição de quem se trata.
Quanto ao ethos dominante, aquele que define o ser no instante, esse pode expressar tanto os tipos mais gerais: ateu ou crente, onívoro ou vegetariano, esquerdista ou direitista…; quanto os mais particulares ou singulares: crente protestante, vegetariano vegano, esquerdista anarquista.
O ethos é a fonte de duas expressões de vida: a etológica, própria de uma determinada espécie (mamíferos, por exemplo), nos termos estabelecidos Konrad Lorentz, e a ética, específica da espécie humana, nos termos de Aristóteles e da tradição filosófica ocidental.
No que concerne à ética, o comportamento ético é a expressão de um determinado ethos (enquanto unidade significativa mínima, comum a um mínimo coletivo da espécie), num determinado instante (momento presente, o agora…).
Dizer que sou a expressão de um ethos dominante é afirmar o papel prevalente desse ethos sobre os demais que poderiam, pela memória do corpo, emergir em seu lugar.
Aqui, quem fala é o acadêmico de filosofia. No entanto, poderia ser o cinéfilo (espectador, cronista, que prefere thriller e filme noir a outro gênero), o político (liberal canhoto) e mais.
Atravessado por diferentes ethos ao longo do tempo (num instante, noutro instante…), o corpo expressa o que é agora, o seu ser esse, as intensidades advindas do ethos que emerge agora de forma dominante sobre os demais ethos (que não são expressos nesse instante). Diante de si as forças inexoráveis do acaso e do outro.
Ser outro, ser esse, o do instante, soa estranho quando se crê num eu devedor, certo e preciso, com contas a prestar, diante dos homens, judicial ou extrajudicialmente, ou diante da divindade, seja ela una ou múltipla.
De outro modo, tal como proponho, é possível admitir que o corpo e o nome podem a cada instante expressar um ethos distinto, de tal forma que esse que se torna, anula aquele que se extingue, ainda que permaneçam o mesmo corpo e o mesmo nome.
- Guaraciaba Tupinambá é cinéfilo, apaixonado por futebol e professor de Ética e Filosofia do Direito na Universidade Federal do Amazonas – Ufam.
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