O centro da cidade

Volto ao tema do nosso velho e surrado centro que continua o mesmo. Não deve ser fácil modificá-lo, mas não consigo entender porque insistimos em mantê-lo abandonado. São calçadas ocupadas por automóveis, camelôs e lojistas, ou quando não, o lixo se encarrega do resto. São fachadas inacabadas ou decadentes e entulhos para todos os lados numa maquiagem dos horrores.

Não temos jardins ou sequer um parque na área central. Como seria interessante se tivéssemos parques temáticos com seringueiras, castanheiras, vitórias-amazônicas e outras plantas silvestres que só nestes trópicos há. Poderíamos ter o jardim da Praça do Congresso articulado ao jardim da Praça da Saudade, num predominaria formas geométricas com uniformidade de cores e escalas e no outro não haveria formas definidas, a demarcar no primeiro, a ação da cultura que impõe suas marcas e, no segundo, a natureza exuberante.Nada de improviso, tudo simples, bem feito, limpo e de bom gosto.

Na inauguração, estabeleceríamos um marco de que, daqui para a frente, teríamos para com o centro da cidade outra postura. Nesse dia, daríamos posse aos jardineiros que cuidariam da praça e dos jardins e, como homenagem a eles, uma placa com o resumo de suas biografias. Nada de heróis ou benfeitores, e sim a exaltação da praça para o povo, feita por ele e cuidada por ele.Mas quem se preocupa com isso? Só queremos construir vias para entulhar 4.000 e poucos novos carros a cada mês, quase 50.000 a cada ano.

Para tanto, vamos diminuindo as calçadas, ocupando as poucas praças, transformando tudo em via de circulação de automóvel ou em estacionamentos. Passar duas horas dentro de um carro num engarrafamento tornou-se rotina. Para muitos, isso é progresso, um ambiente que promete crescimento e transformação. Prefiro ficar com aqueles que entendem que, desse modo, estamos destruindo tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos. Forçando um pouco, é o que Deleuze relaciona com esquizofrenia, no nível mais profundo da economia de mercado, em que a sociedade produz esquizofrênicos da mesma maneira que produz xampu ou carros, com a diferença de que os esquizofrênicos não são vendáveis.

Não desejo isso para a minha cidade, que está feia, embora para mim seja única, pois é a minha cidade. Tenho para com ela uma dimensão de pertencimento, eu pertenço a ela e ela me pertence. Fico triste com as praças abandonadas, mas tenho esperança de que possamos recuperá-las e torná-las lugar de trocas, não de mercadorias, mas de olhares e de amores.Quero o centro da cidade como lugar para trabalhar, mas também brincar e cuidar do espírito e por isso sonho com jardins, como lugares de encontros e encantos que evocam o romantismo de sempre. Afinal, quem nunca viveu um grande amor ligado a um jardim?

Façamos os jardins no centro, para que um dia tenhamos as mais lindas flores para admirar, azuis, vermelhas, de todas as cores e nelas pousarão as mais belas borboletas como sentenciou Fred Góis, poeta do Garantido. Os tajás brotarão e os pássaros voltarão, como celebração da vida. Poderemos nos sentar nos jardins, eleger uma flor para ser nossa ou de quem amamos e especialmente da nossa cidade. Ela, como a pessoa amada, agradecerá.

Os centros das cidades deveriam ser cuidados como se fossem a continuação de nossas casas. Das nossas casas nós cuidamos, da cidade, da nossa, nós fazemos gestão urbana, ou será mesmo que fazemos? Talvez por isso ela seja tão malcuidada.

É preciso manter a utopia não apenas como um sonho, mas como forma de nos rebelarmos.  Apesar de tudo, as expectativas se mantêm, esperemos mais 100 dias para ver se acontece alguma coisa.

 

 

*José Aldemir é professor  da Universidade Federal do Amazonas (Ufam)

 Este artigo foi divulgado anteriormente no  Portal D24Am. A equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.