O que é ser doutor no século XXI?

O que é ser doutor no século XXI? Na tentativa de responder a essa questão, parto da ressalva – inclusive para compensar a inquietante sensação de insegurança que a inexperiência existencial de um tema nos provoca – de que o doutoramento é um estágio de nossa vida a respeito do qual, no momento em que escrevo esse texto, conto com a vivência de apenas um único dia. Nesse sentido, a construção de minha resposta está condicionada à perspectiva do Ser que trata do Vir-a-Ser, e portanto está baseada numa contemplação especulativa de tipos ideais dada a ausência de uma experiência existencial, que espero comece a se concretizar nos próximos quatro anos.

Feita a necessária ressalva, passo efetivamente à construção da resposta. Nesse sentido,penso que o doutorado se tipifica como um processo, e, como todo processo, constitui-se de um conjunto de procedimentos quase-ritualísticos. Parece-me ser realmente um estágio de passagem pelo qual devem se submeter os responsabilizados, auto-esponsabilizados e co-responsabilizadospela guarda, manutenção e formulação do que se categoriza ciência. Eis portanto o que me parece ser inevitável, senão enquanto condição suficiente, pelo menos como condição necessária: o doutoramento é o processo de formação e credenciamento oficial do cientista.

Aparentemente, o doutorado por si só não se constitui credencial que garanta o ingresso imediato de seu portador em certos círculos, uma vez que parecem existir subcategorias manifestas em cláusulas de certos editais e regulamentos, onde se pode ler “Proibido para recém-doutores” ou “Aqui, somente doutores experientes – com cinco orientações de mestrado, por exemplo”. Isso nos faz perceber que o doutoramento se constitui apenas como momento inicial da formação do cientista em potencial, isto é, o estágio em que o Ser, futuro cientista, carente de experiência, seequipa teoricamente com o ferramentário suficiente para a sua imersão no universo da pesquisa.

Eis, portanto, em síntese, o que penso ser o doutorado: um momento, longo e sofrível, pelo qual devemos nos submeter a fim de que nos familiarizemos (no sentido de nos tornarmos da família mesmo) com aquilo que é pertinente ao cientista. Longo, porque, aparentemente, a aceitação entre os pares depende de uma experiência que se vai construindo a partir de certas realizações convencionadas, que não se restringem aos primeiros quatro anos de doutoramento: publicações,orientações, descobertas, entre as quais, a produção e defesa de uma tese parece figurar apenas como um ensaio inicial. Sofrível, porque, no decorrer do processo quase-ritualístico, aparentemente temos que ir abandonando certas atitudes, ideias e comportamentos que nos são originalmente próprios, mas que se tornam inapropriados ao doutor, necessitando por isso serem descartados,reformulados ou substituídos, o que nem sempre é muito fácil, mas que é muito facilitado pela paciente e generosa ajuda que a figura do orientador proporciona. Penso que, no lugar de nossas antigas concepções, durante o doutorado, um conjunto de novas ideias, atitudes e comportamentos deve ser apropriado, enquanto característica essencial ou princípio fundamental do fazer do doutor,denominado “método científico” – que não me arrisco aqui a definir.

A partir destas pré-impressões do que pode ser um doutorado, penso que o Ser doutor no século XXI exige, para além da apropriação e domínio do método científico, bem como de sua permanente prática (visto que o não praticante parece ser rapidamente excluído de certos círculos),uma componente que pode ter sido tradicionalmente excluída do conjunto das características que definem canonicamente um doutor. Penso aqui no compromisso ético e político do fazer científico.

Nesse sentido, penso que o doutor do século XXI deve ter, em princípio, a intencionalidade de suas pesquisas primariamente vinculada à resolução dos grandes e complexos problemas enfrentados pela humanidade na contemporaneidade, muitos deles gerados pelos produtos da própria ciência acumulados durante séculos de fazer científico inconsequente.

Especificamente, penso que um grande desafio da ciência nesse século é se democratizar.E a popularização da ciência inevitavelmente passa pela educação, de modo que o Ser doutor na contemporaneidade emerge nesse contexto carregado da responsabilidade de contribuir com suas pesquisas para a descoberta, teórica ou prática, e para a formulação de alternativas que garantam, por meio da educação, o maior alcance e a maior distribuição possível dos conhecimentos científicos e tecnológicos hoje concentrados em certos países, regiões e instituições.

Complementarmente, do ponto de vista prático e realístico, penso que o tornar-se doutor na contemporaneidade implica, mais do que nunca, uma constante e quase sempre ferrenha disputa por espaços, manifesta por uma concorrência entre pessoas e áreas de conhecimento que só se explica pela forma como a própria sociedade se organiza. O imperativo econômico tende a condicionar ovalor (econômico mesmo) ao que produz em maior quantidade e com constância regular.

Em outras palavras, aparentemente o tornar-se doutor na contemporaneidade está inevitavelmente ligado ao financiamento das pesquisas, cuja fonte de recursos move-se por um princípio darwinista perverso determinado pela lógica do mercado, segundo a qual a inclusão ou exclusão de um pesquisador do grupo dos financiáveis rege-se única e exclusivamente por indicadores estatísticos. Aparentemente, parece-me que isso dificulta-nos e distancia-nos de enunciar explicitamente o que todo doutor na contemporaneidade deveria livremente responder: Eu, Ser Doutor do século XXI, o que devo pesquisar e para quem devo pesquisar?

*Kécio Leite é professor do Departamento de Educação Intercultural, da Universidade Federal de Rondônia.

Este artigo foi publicado anteriormente no Jornal da CiênciaA equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.