Conhecimento tradicional associado à biodiversidade

A partir do final do século passado teve início nas instituições científicas da Europa e dos Estados Unidos processo de reconhecimento da importância dos conhecimentos tradicionais associados à diversidade biológica. Até então eram conhecimentos relegados a uma categoria inferior, de pouco ou nenhum valor científico. Passado um século, esses mesmos conhecimentos adquiriram importância em diversos cenários e, portanto, se converteram em objeto de debate e de medidas no âmbito de diversas políticas públicas, sobretudo àquelas relacionadas à preservação da biodiversidade, à proteção da saúde, à utilização sustentável dos recursos biológicos e ao progresso econômico e social de comunidades e povos tradicionais.

O processo de elaboração do que denominamos conhecimento tradicional associado à biodiversidade, no interior das comunidades, considera não somente a preservação dos elementos naturais, mas também a sua potencialidade de modificação e recombinação diante das mudanças ambientais, para formarem um novo ambiente mais adaptado e forte. Essas mudanças, entretanto, não ocorrem repentinamente, é um processo lento e contínuo que sempre esteve presente nesses elementos naturais.

As culturas que conservam ainda hoje uma íntima relação com a natureza, e produzem seus conhecimentos a partir dessa relação, são as que estão melhor preparadas para ensinar a forma de se comunicar com ela, estabelecem um diálogo que vai além de desvendar segredos científicos e comerciais, dispõem de uma sabedoria necessária para conviver em harmonia com ela e, assim, poder sobreviver em um mundo onde a natureza é predominante, mesmo em crescente processo de degradação.

Portanto, aquelas relações estabelecidas com o meio ambiente em que vivem é uma das características que mais acentua a diferença entre a cultura das comunidades tradicionais com a cultura moderna, ou seja, a relação que a primeira estabelece com o meio ambiente em que vivem; uma relação que coloca o meio ambiente no centro das culturas tradicionais, como pilar fundamental ao redor do qual gira toda a vida social, econômica e espiritual e as preocupações políticas.

Tal característica está em consonância com o paradigma adotado pela Convenção sobre Diversidade Biológica, segundo afirmam especialistas, parte da aceitação da possibilidade de existência harmônica entre sociedade e natureza e representa a superação da ecologia profunda assentada na premissa de que só seria possível perpetuar os recursos naturais se o homem estivesse separado deles, pois seu convívio seria essencialmente nocivo. Por muito tempo, o pensamento ecológico dominante era de que o convívio dos povos tradicionais se contrapunha à proteção e utilização sustentável da natureza.

Hoje, ao contrário desse pensamento, estima-se que as comunidades tradicionais em todo o mundo desenvolveram sistemas econômicos, sociais e culturais centrados no uso sustentável dos recursos naturais. A produção do seu conhecimento é realizada através de observações e aperfeiçoamentos de mecanismos biológicos. Essa relação, que pode ser descrita como interdependente, intergeracional, sustentável e transversal, leva vários especialistas a acreditarem ser a principal causa que torna essas comunidades e povos responsáveis pela manutenção de grande parte da diversidade biológica do mundo.

As comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas apresentam uma predisposição natural à busca pelo conhecimento do entorno em que vivem. Elas se adaptam e aprendem a viver e retirar recursos do ambiente onde estejam localizadas, seja ele a floresta, os manguezais, a savana, a caatinga, ou outro. Existe, portanto, uma simbiose entre o meio ambiente e as práticas dessas comunidades, de forma que elas utilizam os recursos naturais disponíveis, porém como a sua sobrevivência depende desses recursos, a diversidade biológica acaba preservada e utilizada de maneira racional e sustentável. Essa prática é particularmente importante neste período de intensas mudanças ambientais, resultantes da grave destruição da natureza, onde esse conhecimento e discernimento ecológico podem tornar-se vital para o futuro da humanidade neste planeta.

Além disso, especialistas destacam a importância da intervenção das comunidades tradicionais na proteção da biodiversidade, uma vez que diferentes modos de produção e diferentes economias, preservam culturas locais, ao contrário das grandes empresas do setor agrícola, que detém os direitos de propriedade intelectual e que disseminam as monoculturas pelo mundo, buscando a maximização de seus lucros.

Entretanto, os conhecimentos tradicionais, além de serem importantes para a proteção da diversidade biológica, possuem também importância social, visto que é a partir dos modos de produção desses diferentes conhecimentos que as comunidades conseguem sobreviver no ambiente que ocupam. Parece não haver dúvidas de que os conhecimentos tradicionais constituem um suporte vital para o sustento das comunidades tradicionais, – e aí se incluem os povos indígenas, quilombolas e todos os considerados tradicionais, e as possibilidades de adaptação às mudanças ambientais.

Tais conhecimentos, em sua grande maioria, visam atender as necessidades básicas das comunidades tradicionais. Não existe, pelo menos de forma imediata, uma preocupação sobre a mercantilização desse conhecimento para a obtenção de lucros, sendo, por isso, um conhecimento compartilhado livremente entre as diversas comunidades que ocupam o mesmo ambiente. Isso significa que a produção dos conhecimentos tradicionais se dá essencialmente em função da necessidade diária do povo que detém esses saberes.

Nesse sentido, especialistas constatam que os conhecimentos tradicionais são, em primeiro lugar, úteis e essenciais aos seus titulares, sendo a base para as decisões das comunidades tradicionais sobre vários aspectos fundamentais da vida cotidiana, como: a caça, a pesca, a colheita, a agricultura e a preparação, conservação e distribuição do alimento; a localização, coleta e armazenamento da água; luta contra as enfermidades; manutenção da moradia; orientação e navegação em terra e no mar; gestão de sistemas ecológicos; relações entre a sociedade e a natureza e a adaptação ao meio ambiente. Existe uma correlação entre a vida econômica e a vida social do grupo onde a produção faz parte da cadeia de sociabilidade e a ela está indissociavelmente ligada.

Desta forma, parece evidente que para as comunidades tradicionais, os sistemas tradicionais de relação com a terra e o uso dos recursos naturais são condições necessárias para sua sobrevivência, sociabilidade, organização, desenvolvimento e bem estar individual e coletivo. Suas culturas e grupos sociais estão muito atentos aos entornos locais que habitam e sua associação com determinadas espécies é tal, que estas espécies possuem importância muito além das considerações econômicas. Portanto, é necessário reconhecer que as vidas dessas pessoas estão interconectadas e muitas de suas culturas estão entrelaçadas com a consequência de que as mudanças em um aspecto de suas vidas podem invariavelmente conduzir a mudanças em outros aspectos.

* Rosemary de Sampaio Godinho – Doutora em Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
* Carlos José Saldanha Machado – Pesquisador em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz/Ministério da Saúde

Este artigo foi divulgado anteriormente no Jornal da Ciência. A equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.