ARTICULISTAS
No início deste ano, a revista Science, uma das mais bem conceituadas no mundo, trouxe, em seu editorial, o desabafo de seu editor sobre os rumos da Educação nos Estados Unidos da América. Ele relata que se viu em situação delicada quando não conseguiu responder perguntas sobre ciência e natureza em um jogo eletrônico de seu neto (edição 2009) e afirma, de maneira derrotista, que apesar de já ter lutado muito por uma metodologia de ensino melhor quando professor no final da década de 90, o ensino continua sendo um ‘jogo de memória’ e que para os estudantes atuais, memorizar nomes e termos como “complexo de Golgi e retículo endoplasmático” continua sendo mais importante que entender o funcionamento de uma célula, para ficar no exemplo mais reduzido das ciências biológicas. Nessa linha, ele aponta que acabamos por desperdiçar recursos educacionais valiosos e afirma que isso pode acabar se repetindo no ensino superior, concluindo que houve simultaneamente uma trágica trivialização e complicação da educação científica.
Após esta constatação devastadora, a revista aponta, nos editoriais dos números seguintes uma solução, quando apresenta uma série vencedora do “Science Prize” de 2011, a qual é composta de módulos e jogos para aulas em laboratório, campo ou sala de aula. Tal material é criado para introduzir os indivíduos às Ciências e pode ser utilizado por diferentes escolas, por meio de experimentação e não apenas baseado em observação. O que importa, neste caso, é que o aprendiz raciocine. O exemplo dado é didático e muito interessante: na linha da observação damos uma semente de feijão ao aluno, um copo forrado com um algodão molhado com água, e pedimos que ele observe o feijão brotar, crescer e apresentar caule e folhas. Na linha da experimentação, são dados cinco tipos de sementes para os estudantes que devem examinar e responder as principais características que mostrem que aquelas são realmente sementes. A interação do estudante com o objeto é muito maior sendo que eles poderão experimentar, ou seja, abrir as sementes, verificar seu interior, descobrir seus embriões, etc. Esta é a verdadeira educação científica. Isso realmente poderá formar um indivíduo capaz de observar seu entorno e entender seu próprio contexto.
Nesse sentido, educação científica deveria ser redefinida com um foco muito bem direcionado na aquisição de hábitos científicos que serão necessários para que qualquer cidadão possa ter sucesso numa sociedade cada vez mais complexa, saturada e confusa.
Quando uma revista como a Science, uma das mais importantes revistas que divulgam ciência de ponta e especializada no mundo, se preocupa com o ensino de ciências, num país no qual a Ciência é considerada uma das mais bem desenvolvidas do mundo, é porque há mesmo um movimento em curso. A preocupação colocada em pauta pela Science permeia uma crise além-fronteiras. Guardadas as devidas proporções, poderíamos dizer que o mundo todo está priorizando um ensino massificador sem preocupação com o reflexo que este ensino poderá ter na vida do cidadão e do contexto no qual ele se encontra. Talvez alguns países asiáticos já tenham acordado para esta questão, mas o reflexo desta ação está longe de ser visualizado. Mas uma análise global é muito difícil e requer números e dados muito precisos para que possamos oferecer qualquer conclusão a respeito do processo educativo. Melhor será nos ater ao que vemos perto de nós, aos números e observações aos quais temos acesso.
Do lado de cá do equador, nossas preocupações divergem porque os problemas divergem, mas os problemas na Educação se avolumam também e, da mesma maneira que no país da Ciência, o Brasil também comete o vício de trivializar, complicar, banalizar e, com isso, acabar por inviabilizar a formação científica dos jovens. É frequente encontrarmos “exercícios” transcritos de perguntas de vestibulares pregressos de instituições como ITA, Unicamp, etc., em livros e apostilas de oitava ou sétima série de escolas que oferecem o primeiro grau do ensino, o chamado fundamental. Essas escolas (públicas ou particulares) que assim o fazem são “renomadas” pelo rigor do ensino e famosas por colocar um grande percentual de seus egressos em boas faculdades/universidades públicas. Em outras palavras, os ensinos fundamental e médio acabaram por se transformar em cursos pré-vestibulares de longa duração, robotizando e martirizando o estudante e esquecendo-se da importância da educação científica e da formação do cidadão para a sociedade. Sem dúvida, há exceções. No entanto, nosso intento é ressaltar os problemas que se avolumam na educação científica no Brasil, sem cair na vulgaridade da crítica inconsequente, pois que dela não se extrai solução para o problema.
O mosaico que constitui este país é desconsiderado no planejamento da educação de maneira geral. Vários Gestores, Governantes, Dirigentes e Educadores já ressaltaram que há necessidade de respeitar a diversidade cultural, geográfica e histórica das diferentes regiões deste país na preparação de material educativo, no planejamento do currículo escolar, na inclusão do conhecimento específico para cada região. No entanto, nossos livros continuam sendo preparados com uma só realidade, desconsiderando que o Brasil é um país de dimensões continentais, detentor de biomas com megabiodiversidades e com uma variação regional climática e geográfica de relevo, acidentes geográficos, bacias hídricas e paisagens ecológicas que mereceriam destaque no conteúdo escolar, com especial atenção para cada região de origem do jovem aprendiz. Além disso, cada região tem sua própria cultura, que não pode ser nivelada e ignorada num único conteúdo. Relacionar o aprendizado com a realidade do estudante é fator fundamental para a formação de um cidadão consciente de seu entorno e respeitoso com o meio ambiente e a sociedade que o cerca.
Se a educação não corresponder ao universo sociocultural do estudante sua função formadora do cidadão estará comprometida. No entanto, há que se reconhecer que exageros podem ser cometidos em nome dessa idéia e que devemos lembrar que a Educação é o mote para o desenvolvimento e crescimento, hoje sabidamente, sustentável. Educar o cidadão que saiba pensar e agir para que o desenvolvimento econômico de sua região ocorra com sustentabilidade social e ambiental é o principal desafio daqueles que estão heroicamente à frente de uma sala de aula, quer de ensino fundamental, quer de ensino médio. Devemos nos lembrar que o conhecimento é universal e que todo cidadão tem direito a ele. Portanto, o discurso de que não há necessidade de ensinar ciências ao indivíduo que vive em comunidades onde a economia predominante é mineração, pesca, agricultura, industria têxtil, ou indústria automobilística, é um grande equívoco. Conhecer o conteúdo celular e saber para que servem DNA, retículo endoplasmático e complexo de Golgi é um direito da criança/jovem para que ele saiba como lidar com seu próprio corpo, na aplicação mínima deste conhecimento.
O problema todo não reside no que ensinar, mas em como ensinar.
Do meu ponto de vista, o acesso ao conhecimento universal é um direito do todo o cidadão e deve ser garantido até o nível médio, mesmo que nesta etapa da vida do cidadão ele já se proponha a cursar uma escola profissionalizante. O grande problema é a maneira como o conteúdo é apresentado à criança ou ao jovem. Conhecer os componentes celulares e seus papéis é de importância fundamental para que todo ser humano compreenda do que consiste um ser vivo e, até mesmo, do que suas células são constituídas e como elas se comportam, o que cada organela faz e o que metaboliza, porque temos células especializadas para um tipo de função ou para outro, seus formatos, sua composição, etc.. Conhecendo isso de maneira a relacionar com sua realidade é mais fácil do que ficar decorando partes de componentes celulares. Levar o indivíduo a entender como tudo funciona e relacionar com seu dia a dia é a melhor maneira de ensinar.
Conhecer como são os acidentes geográficos é muito importante, mesmo que em uma região não existam montanhas para a criança identificar, mas ela deve saber como é sua própria região, como foi formada e que o rio de cor azul que é mostrado em muitos livros e em muitos filmes, pode ser de muitas outras cores, e que isso depende da propriedade da água que neles correm, do solo no qual o rio se formou e por onde ele passa. O aluno que mora à beira do rio Iguaçu, tem que saber como são os rios da Amazônia, mas deve conhecer mais detalhes sobre as bacias hídricas em seu entorno. O mesmo deve ocorrer com o estudante que mora próximo ao rio São Francisco e com aquele que mora próximo ao rio Branco em Roraima. Somos muitas partes de um todo e essa riqueza, que deve ser valorizada, deve ser apresentada à criança não como um fardo a ser decorado, mas como uma beleza a ser contemplada. O mesmo com a fauna e com a flora locais. E assim sucessivamente.
O país que conseguiu unificar sua língua em tamanha dimensão é detentor da capacidade de unificar conhecimento resguardando suas unidades e respeitando suas diferenças, como o fez com a língua portuguesa. Basta saber fazer.
Hoje, estamos discutindo o uso de tablets em sala de aula (o que não sou nada contra, diga-se de passagem), enquanto ainda temos cidades brasileiras, ou comunidades se assim o preferirem, em que não há escolaridade acima do terceiro ano do primeiro grau. Isso ainda ocorre na região norte do Brasil, um país que desponta como uma economia emergente, como o país no qual o desenvolvimento científico e tecnológico cresce a olhos vistos. Essa assimetria não é, nem será facilmente balanceada. Levar educação aos remotos rincões desse país não é apenas um problema de boa vontade ou de vontade política. Há impedimentos físicos e culturais, que não se rompem com rapidez e sem planejamento adequado.
Por isso, cada canto desse país merece um olhar diferenciado. Cada canto desse país tem questões específicas a serem sanadas quanto ao ensino de ciências e quanto à Educação de uma maneira geral. A criança que abandona a escola no Rio de Janeiro, abandona por motivos totalmente diversos da criança que abandona a escola no Amazonas, no Pará, no Rio Grande do Norte ou no interior do Paraná. Como poderemos tratar todos com uma mesma política e uma mesma estratégia?
Que venham os tablets, que venham os jogos e metodologias bem articuladas, que venha uma nova maneira de dar aulas, com experimentos dedutivos, que venha um bom material instrutivo, unificado onde deve ser, diverso quando for pertinente! Mas que fique bem claro, a sala de aula ainda tem que ser o ponto de partida e o professor ainda deve ser o indivíduo formador.
O computador, os jogos, os livros são instrumentos de apoio ao ensino. O que não podemos é prescindir da orientação segura e firme do professor (o educador, provocador, o que irá colecionar as idéias nas mentes de seus estudantes), que será o guia, o formador, o instrutor da criança e do jovem. A escola não pode abrir mão do seu papel formador, não pode se tornar apenas informadora, como se fosse um cursinho pré-vestibular.
Não podemos esquecer o que queremos quando falamos em educação para todos. Queremos cidadãos bem formados, conscientes e sabedores de seus papéis na sociedade. De pescadores a engenheiros, de agricultores a médicos, de comerciantes a professores, todos merecem passar pela vida escolar e nela aprender o conhecimento básico para se tornar um cidadão apto e conhecedor de si, de seu corpo e do seu entorno, para que viva em harmonia com seu meio ambiente e com a sociedade em que atua.
Este artigo foi divulgado anteriormente no Jornal da Ciência. A equipe do CIÊNCIAemPAUTA esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do site.