Sérgio Ferreira, professor e pesquisador
Para alguns perder o HD externo pode ser o fim do mundo. Agora imagina perder todos os arquivos da sua vida. Loucura, não? Isso é sofrer de Alzheimer. Uma doença que afeta quase a metade dos idosos do mundo e cuja cura poderia ter carimbo brasileiro.
Sérgio Ferreira, químico de formação inicial e Membro Titular da Academia Brasileira de Ciências, lidera um grupo de pesquisa na UFRJ que poderia colocar fim aos anos de espera. Suas investigações apontam que o tratamento para diabetes pode ser a chave para solucionar o problema.
Globo Universidade – Você tem dedicado sua carreira ao aprofundamento dos estudos sobre a doença de Alzheimer. Como você chegou a esta doença?
Sérgio Ferreira – Antes de começar a trabalhar especificamente com a doença de Alzheimer, eu tinha um grupo de pesquisas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que estudava as associações de proteínas e os distúrbios de dobramento. Esse é um nome meio estranho, mas o objetivo era entender como as proteínas adquirem uma determinada forma que permita que elas funcionem. E em um certo momento começamos a estudar um tipo de dobramento incorreto de proteínas que acontece em algumas doenças e decidimos trabalhar com o modelo de uma pequena proteína chamada peptídeo beta-amilóide, que é justamente um dos causadores ou, até onde se sabe, o principal causador da doença de Alzheimer. Então, aos poucos, nós fomos descobrindo como ocorria o processo pelo qual essa proteína adquiria uma forma errada que estaria diretamente associada à doença.
GU – O que acontece com o organismo de quem possui a doença de Alzheimer?
SF – A partir das nossas experiências com cultura de células, nas quais utilizamos neurônios de cérebros de animais, percebemos que o peptídeo beta-amiloide realmente matava os neurônios em concentrações muito altas e, em concentrações mais baixas, não chegava a matar o neurônio, mas provocava sérios problemas no seu funcionamento. Mais especificamente, a proteína atacava os pontos de contato entre os neurônios, as sinapses. E como a comunicação entre os neurônios é fundamental para o funcionamento do cérebro, este era um grave problema.
GU – Como se poderia traduzir isto a ideias mais simples?
SF – É como uma série de computadores ligados em rede. Se você desconecta a comunicação entre os computadores, cada um deles continua funcionando, mas eles deixam de ser capazes de funcionar em rede. É o que acontece nas fases iniciais da doença de Alzheimer: os neurônios ainda estão vivos, mas deixam de se comunicar entre si, afetando o processamento de informações da forma correta para o funcionamento do raciocínio, do aprendizado, da memória e de todas as funções desenvolvidas pelo cérebro.
GU – Sabemos que o Alzheimer é uma doença que movimenta milhões de pessoas e bilhões de dólares todos os anos. Por que ainda não se encontrou a sua cura?
SF – A doença foi descrita pela primeira vez por um médico chamado Alois Alzheimer, em 1960. Então, realmente, porque 107 anos depois nós ainda não temos a cura para esta doença? Porque durante muito tempo não existia nenhum conhecimento sobre o que causava a doença. O primeiro trabalho que começou a indicar que o peptídeo beta-amilóide poderia ser o causador da doença surgiu apenas em 1983, ou seja, há apenas 20 anos. De lá para cá, o conhecimento em Alzheimer tem crescido muito, mas, até agora, ainda não tínhamos conseguido compreender 100% as causas da doença para poder desenhar um medicamento capaz de resolver o problema.
GU – Recentemente o grupo de pesquisa liderado por você e pela professora Fernanda De Felice descobriu que a cura para a doença de Alzheimer pode estar relacionada ao tratamento para o Diabetes tipo 2. O que conecta essas duas doenças?
SF – Há mais ou menos 15 anos começaram a surgir na literatura científica evidências que mostravam que pacientes com diabetes tinham mais chance de desenvolver a doença de Alzheimer e vice-versa. E isso apontava para a existência de algum tipo de correlação química ou epidemiológica entre essas doenças, mas não indicava nada sobre por que razão essa correlação existia. Em 2007 eu e a professora De Felice iniciamos um projeto na UFRJ que buscava entender a associação entre a doença de Alzheimer e o diabetes, do qual também fizeram parte os alunos Mychael Lourenço e Theresa Bomfim. Então em 2009, em parceria com um grupo colaborador norte-americano, o nosso grupo publicou um primeiro trabalho que explicava essa conexão. O que acontece é que quando o peptídeo beta-amilóide – particularmente na forma de um pequeno agregado, os oligômeros – ataca os neurônios, além de várias outras coisas negativas, eles removem os receptores do hormônio insulina da sua membrana. Isso faz com que os neurônios deixem de responder à insulina, ou seja, se tornem resistentes a ela. E isso é exatamente o que acontece no caso do diabetes tipo 2: o nosso organismo se torna resistente à ação da insulina. Então podemos dizer que a doença de Alzheimer atua como um tipo de diabetes cerebral. Um diabetes que causa resistência à insulina nos neurônios, nas células do cérebro.
GU – E qual o significado desta descoberta?
SF – Quem sabe, talvez em futuro não tão distante, os remédios que hoje são usados no tratamento do diabetes possam vir a ser uma alternativa de medicamento para o Alzheimer? Mais recentemente, o nosso grupo tem aprofundado essa linha de investigação e realizado testes nesse sentido. Alguns estudos in vitro realizados tanto em roedores como em macacos, em parceria com um grupo colaborador do Canadá, apontam que os remédios para diabetes parecem funcionar muito bem no tratamento do Alzheimer. E isso é uma grande vantagem, porque esses medicamentos já passaram por todo tipo de teste e já são aprovados para uso humano em pacientes com diabetes. Então nós poderemos pular a fase de testes de segurança, de tolerância, o que é normal com qualquer droga nova.
GU – Qual o próximo passo agora?
SF – O grande passo agora, na realidade, é um passo que nós gostaríamos muito de poder dar aqui no Brasil, que é a fase de testes com seres humanos. Como essas drogas já são liberadas para uso humano, nós poderíamos realizar um teste clínico, ou seja, reunir voluntários, tanto em fase inicial do Alzheimer como em uma fase mais moderada da doença, e administrar as drogas em alguns e o controle em outros. Assim nós poderíamos verificar se o medicamento realmente teria um efeito benéfico aos pacientes. Seria um sonho poder fazer isso no Brasil.
GU – E por que ainda não é possível realizar este tipo de teste no Brasil?
SF – Primeiramente porque falta dinheiro. Seriam necessários vários milhões de reais para realizar um ensaio clínico deste tipo. Em segundo lugar, precisaríamos de uma equipe multidisciplinar com médicos, enfermeiros, neuropsicólogos e diversos outros atores envolvidos para acompanhar os pacientes, garantir que eles estão tomando a medicação corretamente, que estão fazendo os exames necessários, entre outras questões. E tudo isso ao longo de dois a três anos, porque um ensaio desta natureza demora um tempo razoável. E, principalmente, talvez ainda falte entre o nosso meio médico a própria cultura de que é importante e possível fazer ensaios clínicos no Brasil. Infelizmente, a maioria dos nossos médicos ainda não se interessa por fazer este tipo de pesquisa, pois acredita que esta seja uma atribuição de grandes empresas farmacêuticas espalhadas pelo mundo. E isso é um grande erro, porque a gente deixa de poder atuar como uma liderança e continuamos sempre seguindo a reboque do que está sendo feito no resto do mundo.
GU – O seu grupo de pesquisa já publicou artigos em importantes revistas científicas como a PNAS (revista da Academia de Ciências dos Estados Unidos), a Clinical Investigation e, mais recentemente, a Cell Metabolism. Qual a importância de um reconhecimento deste nível para o estímulo ao desenvolvimento da pesquisa no Brasil?
SF – Essas conquistas mostram que com trabalho sério, dedicação e foco é possível produzir ciência de qualidade altíssima no Brasil. Mesmo apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelos cientistas no país. Eu acho que esse é o grande desafio da ciência brasileira atualmente. A ciência cresceu muito nos últimos anos, em termos de número de publicações e de artigos, mas de um modo geral, a repercussão internacional desses artigos produzidos pela ciência brasileira ainda não é muito alta. Se observarmos os periódicos e as revistas nas quais a maioria das pesquisas brasileiras são publicadas, vamos perceber que são revistas de mais baixo impacto, que não dão o destaque necessário para as pesquisas desenvolvidas por aqui. Então quando um pesquisador consegue publicar em uma revista top, como a Cell Metabolism, ele acaba sendo lido e tendo uma repercussão enorme entre os principais pesquisadores do mundo. E é quando as pessoas percebem que ali tem um trabalho interessante é que a ciência progride. Então a ideia é tentar publicar o maior número de artigos nas mais reconhecidas revistas para conseguir ter a repercussão que a ciência brasileira precisa. Nós ainda somos muito pouco conhecidos.
Fonte: Globo Universidade